segunda-feira, 7 de maio de 2007

Repente,Rap,Repente

De repente um rap

No primeiro CD solo, o rapper Zé Brown homenageia a brasilidade dos repentistas

Flávia Guerra

Não é de hoje que o rap e o repente rebentam na quebrada. Afinal, como bem definiram Thaíde e DJ Hum, 'vêm do mesmo ovo. O rap, o repente, o neto e o avô.' Mas esta é a primeira vez que um rapper, ou melhor, Zé Brown, um dos maiores do Brasil, literalmente toca o pandeiro e embola o ritmo do repente com as rimas de protestos cheias de energia do rap. Bom filho do leão do norte que é, Brown sabe muito bem misturar dois gêneros tão distantes e, ao mesmo tempo, irmãos. Afinal, rap não é a mistura perfeita de ritmo e poesia? E o repente? O que mais seria? Muito antes de os americanos darem rima e música a seus manifestos, os repentistas já haviam vencido esse desafio.
E foi pelas ruas do Alto José do Pinho, bairro da periferia do Recife, que Leo (se você perguntar pelo Brown na comunidade, pouca gente vai saber quem é)cresceu ouvindo as rimas ricas que os emboladores pernambucanos tão bem souberam espalhar Brasil afora. Jovem do século 21 que é, embrenhou-se pelo universo do rap e foi um dos fundadores do Faces do Subúrbio que, mesmo fora do eixo Rio-São Paulo, tornou-se um dos mais importantes expoentes do rap nacional ao construir um alicerce rítmico perfeito entre os brasileiríssimos repente, literatura de cordel, a embolada e as batidas do hip hop.
Brown é do rap, mas nunca deixou o pandeiro mofar. Tanto que, em uma segunda-feira qualquer de abril, em um sobrado no centro de São Paulo, divida o estúdio com ninguém menos que Caju e Castanha, em um divertido desafio de rap com repente. Rap com repente? Isso dá é samba, visse?
Com calma, no ritmo da palavra cantada, Brown cria suas letras e canções. E escolhe a dedo, como quem escolhe uma rima perfeita, os
Como já dito, a combinação não é de hoje. Já com o Faces, Brown e cia. ousaram subir com um pandeiro em um palco de show de rap. 'Todo mundo estranhou na época. Mas aqui é o Brasil. São nossas raízes. Nossas referências', brada o rapper. Thaíde e DJ Hum já haviam homenageado a mistura esperta que o Faces sempre fez do rap com a embolada em O Desafio no Rap Embolada, do CD Assim Caminha a Humanidade. Lenine provou que também entende do embolado e chamou Caju e Castanha para participar de seu disco O Dia em Que Faremos Contato. O paulista Rappin' Hood também já gravou com a dupla.
parceiros para dividir com ele a responsabilidade. Para cuidar da produção, Scowa (sim, de Scowa e a Máfia). Para dividir os vocais, figuras já carimbadas como Lenine, Rappin' Hood e Paula Lima; e outras não famosas, mas imprescindíveis para a cultura popular tão peculiar e resistente de Pernambuco, como Aurinha do Côco, repentistas tradicionais como Xexéu, Maturi, Pinto, Castanhola, Passarinho e, claro, Caju e Castanha. O resultado poderá ser visto no CD Repente, Rap, Repente. 'Por isso dividir esta faixa, este desafio com Caju e Castanha foi tão importante e simbólico', conta Brown, que, assim como todo bom repentista, embolou e mandou a letra na hora (leia trecho ao lado).
Talvez você nunca tenha ouvido falar, mas Caju e Castanha, a dupla de emboladores mais célebre do Brasil, ganhou o mundo no início da década, depois de virarem estrelas do cinema pelas lentes de Walter Salles (leia quadro abaixo). Antes disso, comeram muita poeira. Nascidos em São Lourenço, a 30 quilômetros do Recife, os irmãos José Albertino da Silva (Caju) e José Roberto da Silva (Castanha) começaram a ganhar a vida cantando no Mercado de São José e outros pontos da capital pernambucana. Além das rimas, confeccionavam também seus próprios pandeiros, feitos com latas de doce e tampinhas de garrafa. Com os elogios e os trocados que ganhavam, ajudavam a família. No início dos anos 80, resolveram encarar a 'missão pau-de-arara' e partir para o então Sul Maravilha. Foram parar em um endereço famoso da cidade: embaixo da ponte, ou melhor, do viaduto. 'Fomos morar debaixo do Minhocão, no Viaduto do Chá, na rodoviária e até na Estação do Brás', relembra Castanha. 'Quando a gente chegou em São Paulo, o embolador era visto como um pedinte de esmola. Era preso.' 'Com o hip hop também era assim, véio', retruca Brown. 'É. Eu sei. Graças a Deus a Trama vestiu a camisa em 2000 e fez um trabalho com a cultura e com o Caju e Castanha', contam. 'Em 2001, o Caju faleceu, e o Cajuzinho assumiu. Mostramos não só no Brasil, mas lá fora, fizemos shows na França, em Londres. Até no Rock in Rio nós tocamos. Foi lindo', relembra Castanha, que hoje divide os desafios com o sobrinho Cajuzinho. Hoje, Caju e Castanha possuem seu próprio estúdio, que produz, entre outros talentos, CDs de forró do bom. E por que não, rap.
DUELOS DE TITÃS
Lindo é ver duas tribos que poderiam criar tanto caso entre si criar mesmo é causos para contar. 'Eu adoro tanto esses cabra que tatuei eles no braço. Olha', mostra um orgulhoso Brown, que começou a gerar seu CD solo em andanças pelo sertão. 'Minha família é de Nazaré da Mata. O sertão é muito longe de onde nasci e cresci. E tive a oportunidade de ir para uma cidade chamada Tabira. Por incrível que pareça, a gente conhece pouco nosso próprio Estado. No caminho, o verde da mata ia secando, e as pessoas iam parecendo zumbis. Só caveiras dos bichos mortos pela estrada. Isso me inspirou a escrever a música O Canto do Acauã. Quando o acauã canta é porque está chegando a seca. Para dividir comigo, pensei em Lenine', conta Brown. 'Ele criou uma melodia para a letra, que é uma denúncia. Tem até aboio.
'O set list conta com outro desafio de côco no qual Caju e Castanha também participaram. Paula Lima entra em uma faixa especial. 'Tava na beira da praia; vendo o que a maré fazia, quando eu ia, ela voltava; quando eu voltava, ela ia... Vou improvisar no final. Pensei na Paula para cantar este refrão', explica Brown, que quis trazer para o disco outras propostas de timbres de vozes. 'Rappin' Hood vai dividir comigo uma canção que se chama Caneta, Papel e Raciocínio. E meus alunos, de uma instituição da qual faço parte (o Grupo de Apoio Pé no Chão) e que trabalha com crianças que vivem em situação de risco, também vão participar.' A proposta de cabra Brown é levar a arte para a rua. 'Para que os meninos aprendam música, capoeira e a construir instrumentos.
'Em Repente, Rap, Repente, os mestres emboladores também vão ter liberdade para criar, mas a denúncia característica do rap não sai de cena. 'Não vou deixar o protesto de fora. Mas vou fazê-lo com a alegria e a irreverência da embolada. É um disco para se entender qual é. E para dançar. Tem coisas que acho muito bom, como a chegada da zabumba e do pandeiro', anima-se o rapper, que não deixa a outra paixão de lado e anuncia que o Faces também entra em estúdio em breve. 'Demos um tempo. Cada um foi fazer seus corre na vida. Foi uma fase necessária, de reflexão. Mas voltamos e, como digo a meus alunos, você tem que ser verdadeiro. Quando você é autêntico, pode demorar muito, mas um dia alguém percebe. Aquilo é seu. Ninguém tira. Como Caju e Castanha.'

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